PRETO NO BRANCO
Capítulo 5 – Aprender a Desistir
Sabe, amor
Eu fui sem canto pra tua direção
'Tava sem voz, sem rumo, só coração
Nem sei onde é que a gente se perdeu
Ou se escondeu do nosso bem
Durante o verão no País do Fogo, o sol demorava a se pôr, mas era possível sentir o dia ficando mais lento – ou seriam as pessoas – com a aproximação vagarosa da noite. O céu visto através das janelas da Torre de Fogo tomava tons rosados, o ângulo pintando o lado de baixo das muitas nuvens.
Fizera um calor terrível naquele dia, tornando o já tedioso trabalho de pesquisa que faziam insuportável. Saber das coisas era parte do treinamento para a vida absurdamente burocrática de Hokage a que Naruto estava destinado e Sasuke fora arrastado junto porque estava na Vila sem ter o que fazer até o casamento. Era uma desculpa esfarrapada para disfarçar que o treinamento se estendia ao Uchiha e todos os envolvidos – Kakashi, Shikamaru, o próprio Sasuke, e até Naruto – sabiam disso. O moreno aceitara sem reclamar. Qualquer coisa era melhor do que ficar sozinho em casa, vagando de um lado para o outro sem conseguir se concentrar ou parado olhando para o teto, pensando, pensando, pensando.
Ali, pelo menos, tinha Naruto, embora o calor o deixassem infinitas vezes mais irritante.
- Argh, não aguento mais! – O loiro fechou outro livro-caixa do início do governo do terceiro Hokage. Era a quadragésima sexta vez que ele falava a mesma frase no mesmo tom meio entediado, meio desesperado, as mãos bagunçando ainda mais o cabelo suado. Não que Sasuke estivesse contando.
A mesa vibrou levemente quando a cabeça de Naruto bateu contra ela, o rosto voltado para as grandes janelas. O Uchiha continuou passando os olhos pelo orçamento de uma missão ANBU de 60 anos atrás. Precisaria perguntar a Shikamaru sobre a inflação naquela época e à Tenten sobre o preço histórico de shuriken, porque não era possível que tivessem gastado 87 mil ryo em kunai para uma missão de busca e apreensão de três dias para um time de duas pessoas.
- Ne, Sasuke...
Poderiam ser usuários dos mesmos tipos de pergaminhos arsenais de Tenten ou talvez fosse um erro do relatório, o que seria ruim, mas se a auditoria de 60 anos atrás tinha deixado passar, não tinha porque eles desenterrarem aquilo agora.
- Sasuke...
A menos que fosse informações frias para um caixa dois, aí ele teria mais um motivo para odiar aqueles conselheiros desgraçados, escória maldita que vinha destruindo a integridade da Vila desde...
- Oi, teme.
- Hn?
- Eu perguntei se você irá até elas.
- Não.
- Você sabe que Sakura-chan não quer apenas conversar, não sabe?
Conhecendo-a há mais de dez anos, mesmo com as "pausas" de convívio, não era difícil entender as intenções de Sakura ao procurar Hinata no dia anterior. Naruto e Sasuke estarem no apartamento não estava nos planos, mas não a impedira de solicitar o encontro, atestando sua determinação – que a Haruno escolhera chamar assim em sua cabeça ao invés de admitir trata-se de teimosia por sentir-se roubada de algo que sequer podia chamar de seu.
- Sakura-chan passou tempo demais com a gente e pegou esse mau hábito de resolver seus sentimentos com os punhos. – Naruto riu sem o mínimo vestígio de humor. Da última vez que ele e Sasuke foram "resolver seus sentimentos", acabaram os dois sem um braço.
- Sakura não quer resolver seus sentimentos – Sasuke fechou a pasta do relatório e a colocou na pilha que nomeara mentalmente "Problemas para Shikamaru". Seu olho negro voltou-se para as grandes janelas, estreitando-se pela claridade bronzeada do poente. – Ela só quer um bode expiatório.
Para Sasuke, Sakura tinha analisado a situação do jeito que melhor lhe convinha, como sempre, e chegado a pior conclusão possível: Naruto não tinha participação em nada aquilo, fora seu breve namoro com a Hyuuga; Sasuke era o amor de sua vida, então a rosada não via motivo em confrontá-lo sobre algo que ele não escolhera e nem do qual conseguiria fugir – e talvez porque da última vez que tentara confrontá-lo sobre algo, quase morrera; Fugaku já estava morto, Hiashi era muito poderoso, Kakashi era uma figura de respeito e autoridade e já tinha se provado inútil em desfazer o contrato. Restava Hinata que, embora também vítima das circunstâncias, para Sakura, tornara-se uma rival. De novo. Primeiro pelo lugar que ocupara de figura feminina ao lado de seu melhor amigo e agora como futura esposa de seu primeiro e grande amor.
- E então? – Sasuke fechou o olho negro por um segundo para se livrar da fotossensibilidade causado pela claridade. Quando voltou a focar, Naruto o encarava, sério, as sobrancelhas franzidas, os punhos cerrados sobre a mesa. Foi Sasuke quem desviou o olhar primeiro.
- Então o quê, dobe? Você conhece Sakura... – o Uchiha ainda era capaz de se surpreender que as pequenas mentiras que contava para manter sua vida amorosa em segredo lhe doíam. - ...e Hinata melhor do que eu.
A resposta de Sasuke apenas forneceu oxigênio à raiva flamejante de Naruto, que apertou mais os punhos. Depois de um momento tenso em que o Uchiha pensou que o loiro fosse fazer o de sempre e tentar – havia já algum tempo que ele de fato conseguia – socá-lo, Naruto soltou o aperto, baixando os olhos para as palmas das mãos onde as unhas tinham deixado marcas de lua crescente.
- O que você acha que Hinata irá fazer, Sasuke? – Naruto não esperou que o moreno lhe desse outra resposta evasiva ou que sequer abrisse a boca. – Você acha que ela vai se defender de Sakura-chan, porque também é vítima desse contrato, ou vai aguentar calada porque se sente culpada de vocês já estarem juntos?
- Você sabia. – Não foi uma pergunta, o raciocínio de Sasuke era mais rápido que a necessidade de fazer perguntas complementares. Naruto sabia do relacionamento entre ele e Hinata, talvez não o quanto significava, mas o suficiente. – Quando?
- Tem uns quatro meses, um dia antes de partirmos para Suna da última vez.
Naruto virou-se, os olhos azuis voltaram para as janelas. O moreno não conseguia ler a expressão do melhor amigo, mas sua voz saia monótona, desprovida da energia a que estava acostumado.
– Você disse que precisava voltar para casa. – Naruto riu pelo nariz uma vez. – "Casa". Você já reparou que nunca diz essa palavra, teme? Você usa 'voltar para a vila', 'ir embora', 'me encontre no apartamento', mas naquele dia você disse que precisava voltar para casa – o Uzumaki voltou-se para ele, olhos azuis brilhantes e uma expressão suave, apesar de toda a conversa soar como um sermão. – E pareceu que você não estava falando de um lugar.
- Você me seguiu?
- Heh. – Naruto coçou a bochecha tendo a humildade de se mostrar envergonhado. – Foi mal.
O Uchiha não disse mais nada. Não sabia o que dizer. Agradecia Naruto pela discrição? Pedia desculpas? Brigava com o loiro? Pelos motivos certos de tê-lo seguido? Pelos motivos errados de tê-lo seguido? Podia culpa-lo? Se estivesse realmente preocupado com Naruto, provavelmente teria feito a mesma coisa e justificado para si mesmo que estava tentando cuidar do melhor amigo.
- Você não falou nada, dobe.
- Nem você, teme.
Um longo minuto se instalou entre os dois, Naruto conseguia sentir Sasuke reunindo palavras, fôlego e forças.
- Eu não queria... – Naruto se surpreendeu com a admissão. O moreno não o encarava, os olhos estavam voltados para a única mão, mas a visão estava em algum lugar distante dentro dele. – Não queria ter que anunciar nada, como se Hinata fosse a ganhadora de um concurso.
O Uzumaki entendia. Ele se lembrava do assédio a que as pessoas emocionadas que se diziam suas fãs eram capazes. Após a guerra, sua popularidade tinha aumentado exponencialmente como protetor da vila, assim como, curiosamente, a popularidade de Sasuke jamais fora apagada completamente, mesmo que ele tivesse seriamente se esforçado para tal. Naruto fora pintado nas cores do herói nascido do trauma e Sasuke, do vilão incompreendido com passado trágico. Ambos injustiçados, ambos tentando fazer o melhor que podiam em suas circunstâncias.
- Se as pessoas não soubessem, ninguém poderia se intrometer.
Naruto entendia aquilo também, por mais que lhe doesse pensar que Sasuke o vira como um possível empecilho para seu relacionamento com Hinata. Fora o loiro que decidira que era melhor se separar da Hyuuga para não seguirem investindo em um relacionamento em que apenas um dos lados estava pagando as parcelas devidamente.
Mas se Sasuke e Hinata tivessem assumido o compromisso três anos antes, o futuro Hokage teria tido o discernimento para ver o relacionamento dos dois com a mesma claridade e superioridade de espírito?
Naquela noite no Clã Hyuuga, em que o Uchiha o convidara como parte de sua família, Naruto sabia, e mesmo assim sentiu seu interior se contorcer quando eles trocaram os presentes. Por quê?
Naquela noite no bar, ao se oferecer para levar a moça para casa, Naruto sabia, e mesmo assim hesitara em soltá-la. Por quê?
Naquele momento, Naruto sabia, e sabia que teria se intrometido, de uma forma ou de outra, como no dia anterior, como naquele instante.
- Depois de um tempo, como as pessoas não perceberam sozinhas, não tocamos mais no assunto de contar e só fomos vivendo – Sasuke ainda não tinha terminado, trazendo o loiro de volta de seus pensamentos. – E então veio esse contrato...
O Uzumaki teve a impressão de que o outro estava simplificando demais a história, mas deixou passar.
- Eu quero ficar com ela – dessa vez, Sasuke tirou os olhos da mão até encontrar os cerúleos do melhor amigo, para que Naruto tivesse certeza da seriedade de suas palavras e sentimentos. – Eu a pedi em casamento logo depois de sabermos sobre o contrato e o teria feito mesmo sem ele. Eu quero estar com Hinata.
Naquele momento, de novo, Naruto sabia, ouviu Sasuke dizer a verdade com todas as letras, professar em voz alta seus sentimentos pela primeira vez, e não conseguiu oferecer seu suporte completo e sincero por motivos que achou melhor não especular imediatamente, então fez o que pode com sinceridade: sorriu por estar feliz que seu melhor amigo finalmente parecia estar feliz também.
- Isso simplifica as coisas.
Se Naruto e Sasuke fossem ninjas menos poderosos, a voz de Shikamaru os teria assustado – o homem fazia jus às suas técnicas, movendo-se como uma sombra preguiçosa –, mas conseguiram mascarar suas reações, apenas virando-se para o Nara que se aproximava da mesa em que ambos estavam, as mãos nos bolsos, a cara de quem queria muito um cigarro – ou um maço.
- Você já sabia, Shikamaru?
- Você acha que se eu já soubesse teria perdido meu tempo tentando desfazer os jutsu do contrato? – o rapaz retrucou. – Não, mas desconfiei na noite do bar, com o kanzashi de Chidori. Intrincado demais para ter sido comprado pronto e bem feito demais para ter sido produzido em tão pouco tempo.
Sasuke e Hinata tinham conversado sobre quem poderia perceber com maior facilidade entre os amigos deles. Shikamaru tinha ficado no topo da lista, mesmo não sendo um amigo tão próximo de nenhum dos dois, apenas por suas habilidades de dedução. Ino, curiosamente, tinha ficado em segundo lugar, e não por suas habilidades psíquicas, mas porque era a com inteligência emocional e percepção mais aguçados. Naruto estava no top três porque, inevitavelmente, conhecia Sasuke como a um pedaço da própria alma.
Na conversa, eles também tinham discutido quanto tempo levaria até serem descobertos. Nesse ponto, todos os seus amigos excederam excessivamente as expectativas. Os dois ficaram sem saber se eles eram demasiadamente discretos ou suficientemente desinteressantes.
- Pensando agora, eu vi você e Hinata treinando uma vez e você deu seu haori pra ela quando estavam saindo...
- Ah, teve um vez numa missão... – parecia que uma luzinha tinha se acendido em Naruto com a memória. – ...que ela te entregou uma escova de dentes e eu lembro de ter pensado "por que a Hinata tava carregando a escova do teme? Que folgado!".
- Acho que já vi Hinata sair da casa de banho com uma de suas camisas, tinha o leque...
- E no último festival, você não usou uma yukata? Eu acho que era do Neji.
- Não-estávamos-tentando-esconder – Sasuke grunhiu entredentes, por irritação ou constrangimento, era difícil distinguir.
- Parece que não – Shikamaru finalizou. Ele mirou Naruto por um momento, depois Sasuke de novo. Conseguia sentir a energia nervosa emanando dos dois, como motores aquecendo. – Vocês não tem que estar em algum lugar agora?
- Sim – disse Naruto.
- Não – disse Sasuke.
- Danos à vila são descontados diretamente na folha de pagamento agora – o Nara pescou o primeiro arquivo da pilha que Sasuke nomeara mentalmente como "Problemas para Shikamaru" e folheou. Pareceu reconhecer o mesmo erro que o Uchiha vira mais cedo em segundos e fez uma careta. – Sasuke, pode ajudar a...
Mas tudo o que restara na sala do arquivo da Torre era a luz dourada do entardecer tardio do País do Fogo.
Hinata levantou a cabeça com um sobressalto quando reparou que a luz que entrava pelas janelas e iluminava as redações sobre ética da prática ninja que corrigia passara a ter um tom de laranja no extremo da saturação. Ativou seu Byakugan para verificar se Sakura já tinha chegado, não a encontrando quando mirou a direção da entrada da Academia, mas em outro lugar.
Levantou-se de sua mesa com calma, guardando as redações corrigidas separadas das por corrigir. Deixou a bolsa sobre o tampo e se aproximou das grandes janelas que davam para o pátio interno, para o campo de treinamento da academia, para a árvore com o balanço.
Sakura estava sentada como Naruto costumava se sentar, uma perna de cada lado da madeira, ambas as mãos segurando a corda. Ela tinha a cabeça baixa, o cabelo mesclado com o poente tingindo-o de um bonito tom de laranja – Hinata imaginou que seria um tom possível para uma criança que nascesse da combinação do DNA de Sakura e Naruto.
Balançando a cabeça para afastar aquele pensamento, a Hyuuga deixou a janela antes que a médica a visse ali, observando-a, e colocou-se a caminho do pátio.
Sabia quais eram as intenções de Sakura ao requisitá-la, convoca-la, para aquela conversa. Sabia e entendia, mas aceitava? Ainda estava se perguntando isso. Certamente a conversa escalaria para uma discussão, para um desentendimento e para uma briga.
Sakura a via como uma ladra através de um contrato de casamento arranjado.
Da qual Hinata também era vítima.
E como se os sentimentos de Sasuke fossem um bem em sua posse.
Não queria aquele confronto, mas ao mesmo tempo queria que Sakura finalmente entendesse que devia abrir mão daquele sentimento platônico, para sua própria saúde emocional e psíquica.
Apreensão quanto a reação da Haruno era um dos principais motivos de terem mantido sua relação em segredo no início. Não queriam machucá-la, então esperavam e esperaram que ela conseguisse crescer para além daquela obsessão. Vez após outra, Sasuke-kun atrás de Sasuke-kun, ficaram decepcionados. No fim, não tentavam esconder e nem desejavam contar, não pra ela, porque aquela violência, consigo e com os outros, ficara provado, sempre seria o caminho que Sakura escolheria.
As portas que davam para o pátio rangeram quando Hinata as empurrou e saiu. Ao longo, pode perceber Sakura levantar a cabeça, os olhos esmeraldinos se fixando em si.
Hinata piscou e Sakura se colocou em movimento.
O Byakugan se ativou mais por instinto do que por consciência, porque uma presença hostil e poderosa vinha em sua direção. Viu a aproximação dos caminhos de chakra brilhantes dentro do mundo monocromático proporcionado por sua kekkei genkai, a imensa quantidade acumulada na testa, uma quantidade menor, mas não menos letal, acumulada no punho direito.
Hinata refletiu no tempo de uma sinapse se não deveria deixar que Sakura lhe acertasse o golpe, ao menos uma vez. Sasuke agora era seu, e não por causa de um contrato; Sasuke era seu porque todos os dias, todas a horas e todos os momentos, eles procuravam um pelo outro, encontravam-se e trabalhavam para se encaixar, às vezes trocando peças de lugar, às vezes substituindo-as por completo, e outras as peças eram tão iguais que pareciam a mesma, permitindo-os deslizar sem esforço ou atrito.
Decidiu-se que não, não aceitaria aqueles golpes.
Além de tudo, iria se casar em breve, não queria ter hematomas para sua noite de núpcias.
Concentrou seu chakra nas palmas dos punhos gentis, mudou seu centro de gravidade de forma a repelir o golpe, e espalmou sua mão esquerda contra o antebraço de Sakura, os dedos da outra mão se fechando para deixar expostos somente o indicador e o médio e acertar três pontos de chakra sobre a costela e sob a axila de Sakura em rápida sucessão. Aquilo impediria que a Haruno concentrasse poder no punho direito, pelo menos enquanto ela não se concentrasse em mandar chakra curativo para aqueles pontos, mas mesmo assim demoraria alguns minutos até que ficassem utilizáveis novamente.
Sakura deve ter sentido o poder se retraindo como um animal assustado de volta para seu cerne, porque usou a outra mão para empurrar o ombro de Hinata e se afastar. Flexionou os dedos algumas vezes, mas os nervos não tinham sido afetados. A Hyuuga talvez devesse ter usado suas agulhas de chakra para deixa-la imobilizada, teria sido mais fácil para terem uma conversa, como era a intenção original.
A rosada a atacara ao primeiro sinal de sua presença, conversar era a última coisa que Haruno Sakura tinha em mente.
- Sua puta...
Sakura estava contra o vento, por isso Hinata julgou não tê-la entendido direito, mas antes que pudesse vocalizar qualquer fático que a identificasse como confusa, a médica continuou:
- Sua puta! – A exclamação atingiu Hinata onde o golpe não pudera. – Primeiro Naruto e agora Sasuke-kun... Você toma tudo que é meu!
- Nenhum dos dois é seu, Sakura-san.
Os punhos de Sakura tremiam e a resposta de Hinata apenas intensificou a raiva no semblante da outra, que atacou de novo, dessa vez com chakra concentrado no punho esquerdo e nos pés, bombardeando a Hyuuga com taijutsu mortal.
Hinata se esquivava e desviava os golpes; por mais inteligente que Sakura fosse em suas estratégias de combate – e isso ela era bastante –, estava lutando movida por sentimentos, e raiva, indignação e tristeza não eram emoções clareadoras da mente, assim a morena conseguia ir fechando um por um dos pontos de chakra dela, obrigando a médica a fazer cada vez mais força para utilizá-los, drenando-a.
No último golpe as pernas de Sakura cederam e ela caiu. Aproveitando-se do movimento, o punho repleto de chakra acertou o chão, quebrando-o em um raio grande o suficiente para atingir Hinata, que caiu de costas com um grunhido, o ar saindo de seus pulmões de uma vez com a força do impacto.
Quando abriu os olhos e tentou inspirar, viu tudo rosa sobre si, um punho a um fio de cabelo de se encontrar com seu olho direito. Às costas de Sakura, Hinata notou as estrelas e percebeu que a luta durara o suficiente para o sol se pôr.
Os olhos esmeraldinos brilhavam, a Haruno inteira tremia. Por mais que estivesse à beira de conseguir o que viera ali para fazer, Sakura hesitou e Hinata conseguiu utilizar aquele momento.
- Sakura-san – chamou suavemente, sua voz paralisou a oponente. – O que quer com tudo isto? – Os olhos de Sakura estremeceram, fixados em algo dentro da rosada. – Hokage-sama, Shikamaru-kun, meu pai, todos tentaram romper o contrato e não conseguiram, então o único jeito seria se uma das partes morresse. É isso que quer fazer?
Elas eram ninjas, o conceito e o fato da morte era intrínseco aos seus deveres. Mesmo o assassinato de um companheiro não seria uma novidade. A motivação de Sakura, sim, poderia ser considerada torpe e rasa, e repercutiria em todas as esferas de sua vida.
O punho se afastou do rosto da Hyuuga, mesmo que hesitante. Estava mesmo disposta a tirar a vida de uma companheira da Folha para impedir que o casamento arranjado do amor de sua vida fosse consumado?
Estava, de certa forma; ao mesmo tempo não queria ir para a prisão, perder a licença para medicar, ter sua vida tirada de si.
Contudo, o que mais temia de verdade era a reação de seus melhores amigos. Temeu, mais uma vez, a rejeição de Sasuke.
- Sakura-san – a voz a despertou novamente e a rosada parou de fazer força para tentar acumular chakra no punho, seus tenketsu bloqueados latejavam. Havia algo estranho nos olhos de Hinata quando os esmeralda se voltaram para ela. Sakura não poderia saber, mas aqueles eram os mesmos olhos cheios de determinação que se colocaram diante de Hyuuga Hiashi e todos os outro anciãos dos Hyuuga para por fim a séculos de tradição degradante e nefária. Nenhuma dor de amor seria páreo. – Se vai mesmo fazer isso, ao menos precisa saber de toda a verdade.
- Verdade?
A morena assentiu, séria. Sakura ainda estava sobre si, uma perna de cada lado de sua cintura, prendendo seus braços contra o corpo com os joelhos. Nada além de confusão distorcendo o semblante da Haruno.
- Nem eu nem Sasuke sabíamos do contrato, mas ele existir apenas marcou a data – a voz de Hinata saiu firme, mesmo mantendo o tom baixo de sempre. – Sasuke e eu... – hesitou, porque era a primeira vez que diria aquilo em voz alta. Precisou de um momento para as palavras fazerem sentido em sua cabeça e deslizarem para a língua. – Sasuke e eu estamos juntos há três anos.
- O quê?
- Como... Como um casal. – A Hyuuga sorriu, os olhos se suavizando enquanto o coração se enchia com a emoção de finalmente poder falar em voz alta. Não tinha intenção de escarnecer da incredulidade da rosada, mas trazer aquela verdade à tona lhe preenchia com felicidade difícil de conter. Estava corada e nem percebeu. – Como namorados.
- Do que você está falando? Três anos? Como poderiam esconder um relacionamento por todo esse tempo?
- Não estávamos tentando esconder.
Os olhos de Sakura se moviam rapidamente, sua mente pulando de um pensamento a outro, de uma memória a outra, juntando os cacos de informação que emolduravam aquela revelação.
Sasuke abrira mão do apartamento dele e nunca dizia onde ficava quando voltava pra vila; não era incomum ver os dois sentados próximos quando todo o pessoal – ou partes de seu grande grupo de amigos – se reuniam em bares e restaurante, mas Sakura sempre raciocinara que devia ser apenas uma coincidência dos lugares vagos; teve aquela vez em que Hinata fora visita-lo no hospital, mas como ela trabalhava lá como voluntária algumas vezes por mês, era apenas uma visita de cortesia, não?; e as luvas... Estava com Ino e Hinata fazendo compras no final do ano passado, Hinata escolhera um par de luvas pretas genéricas, exceto por serem caras e de excelente qualidade. Quando Ino perguntou, Hinata desconversou sobre pra quem era o presente. Sakura ficara interessada, porque lembrava-se de que Sasuke usava luvas daquele tipo e as dele estavam bastante rotas, mas desistiu porque se comprasse o par, não teria dinheiro para os presentes de mais ninguém. Dias depois, Sasuke apareceu com luvas novas parecidíssimas com as que Hinata comprou.
Fora assim tão cega ou simplesmente não queria enxergar?
- Quem sabe? – Sakura conseguiu recuperar um fio de voz para perguntar. Teria sido somente ela a ignorar o fato?
- Ninguém sabe. – Hinata teve a decência de parecer envergonhada.
- Você está mentindo...
- Sakura-san...
- Ha ha! – Ela riu sem humor, os punhos se retesando de novo. Hinata notou, com o Byakugan que mantivera ativado, que os tenketsu do braço direito haviam sido restaurados, como esperado das grandes habilidades da melhor ninja médica da Folha, e bombeavam chakra para a mão fechada que se erguia com a mira em sua cabeça. – Com praticamente todas as pessoas da vila caindo as pés dele, nunca que Sasuke-kun escolheria você!
O punho baixou.
O chute pegou Sakura no estômago, lançando-a por vários metros. A rosada conseguiu se colocar agachada, a mão com a concentração de chakra agarrou a terra, criando quatro longos sulcos, para conseguir parar. Olhou pra cima, resfolegando, saliva pingando da boca e do nariz expelida pela força do golpe que recebera.
Sasuke estendia a mão para Hinata para ajuda-la a se levantar, disse algo que Sakura não conseguiu entender, Hinata respondeu com um aceno negativo de cabeça, depois disse alguma coisa que a Haruno de novo não conseguiu entender.
Vê-los juntos, mesmo que apenas parados lado a lado, doeu.
E Sakura soube que Hinata falou a verdade.
- Sasuke-kun...
Sasuke não olhou pra ela, sequer a ouviu, sequer se deu conto que ainda estava presente.
- Sakura. – A visão de Sakura foi obstruída por Naruto. A rosada olhou pra cima com dificuldade, limpando a boca com as costas da mão enluvada. Percebeu que seu melhor amigo não usara o sufixo depois de seu nome. – O que você estava tentando fazer?
- Na-... – A voz da Haruno não saiu e a moça precisou pausar para tossir algumas vezes. – Naruto... Você... Você sabia...
- Isso importa?
Ele sabia.
Sakura apertou a terra onde seus dedos ainda estavam fincados, sentiu-a se contraindo em sua palma.
Sasuke e Hinata estavam em um relacionamento secreto há anos, Naruto sabia, sabe-se lá quem mais, e ela foi mantida no escuro. Ela não percebeu nada! Hinata disse que não estavam tentando esconder, mas esconderam, e muito bem.
Estava com raiva de todos eles, até mesmo, e principalmente, de Sasuke. Se ele tivesse ao menos correspondido seus sentimentos – até Naruto deu uma chance à coitada da Hinata por um tempo – ela não precisaria estar naquela situação lamentável, porque não seria a mesma coisa, não com ela.
Não teria deixado Sasuke escapar se tivesse tido uma chance!
Não teria deixado Sasuke escapar...
- Vamos – Naruto disse, ainda parado a sua frente. Ele tinha uma postura incomumente rígida, seus olhos azuis nem um pouco acolhedores.
- Pra onde?
- Kakashi-sensei.
- Por quê? O Hokage não tem nada a ver com isso.
- Você tentou matar uma companheira da Folha, Sakura. – O Uzumaki estava tentando se controlar, era possível ouvir a decepção em sua voz. – Uma pessoa que a considera uma amiga. Por causa de uma desilusão amorosa.
O coração de Sakura estremeceu. Não porque se deu conta da gravidade do que tentou fazer, sabia disso desde o início, mas porque o que mais temera se concretizou: Hinata ainda respirava, Naruto estava decepcionado com ela e Sasuke nem mesmo a olhava mais.
Ousava ter esperanças de que decepção era o único sentimento que ele estivesse tendo por ela naquele momento.
Um calafrio percorreu seu corpo. Tentou em vão e ainda foi malsucedida.
Sakura levantou a cabeça de novo. Sasuke e Hinata já não estavam mais na Academia, não os via nem sentia suas presenças. Queria, precisava conversar com Sasuke. Ainda, depois de tudo, era a única coisa que queria fazer.
- Sasuke-kun...
- Melhor dar um tempo pra ele. – Naruto, apesar de tudo, tinha uma mão estendida para ela. – Você deveria ser a última pessoa a testar os sentimentos dele por Hinata-chan.
Não teria deixado Sasuke escapar...
Sendo que ele passou a vida toda fugindo de seu amor.
Do que ela chamava de amor, pelo menos.
As lágrimas vieram primeiro, depois a ânsia e o vômito. Colocou para fora o pouco que tinha no estômago, piorando a dor nas costelas que começara com o chute de Sasuke. Limpou a boca com as costas das luvas, mas não os olhos.
A mão de Naruto continuou estendida, mas ele não fez nenhum comentário nem tentou confortá-la de maneira alguma.
Chorou por um longo tempo, de dor, exaustão, culpa, alívio, tristeza, arrependimento. Por nada disso e por tudo de uma vez. Era muita bagagem para desfazer em um único momento de emoção.
A mão de Naruto continuou estendida.
Sakura sabia que se tivesse terminado de fazer o que queria, se Hinata não tivesse se defendido, se Sasuke não tivesse intervindo, se Naruto não estivesse ali, se Sakura a tivesse matado, como era sua intenção...
Aquela mão não estaria ali.
- N-na-naruto... – sua voz tremia, embargada, envergonhada. – E-eu... Eu preciso de ajuda.
O banheiro do pequeno apartamento estava quente, pela estação e pelo banho do qual Hinata acabara de sair. O vapor grudava na pele e tornava o ato de secar quase impossível. Mesmo assim, Sasuke continuou, secando o copo de Hinata, depois os cabelos, até estar satisfeito e fazê-la se sentar no banquinho que usavam para lavar o corpo antes de entrar no ofuro.
Ajoelhou-se em frente a ela com somente a toalha enrolada na cintura. Ambos e todo o ambiente cheirava a uma mistura de eucalipto e arnica, banho medicinal para ajudar com os hematomas que pipocavam pelo corpo de Hinata. Defender-se dos golpes de Sakura era uma batalha por si só devido os punhos repletos de chakra. Mal precisavam encostar no oponente para causar dano.
Hinata continuou em silêncio. Sasuke nunca a tinha presenciado tão distante. Ele destampou o pote de unguento que ela preparava e começou a espalhar pelos diversos machucados, um maior que outro, um pior que o outro, e mesmo assim Hinata se defendeu o suficiente para não ter nenhum osso quebrado, ligamento rompido ou músculo lacerado.
- Sasuke...
O Uchiha parou imediatamente de esfregar o unguento num roxo na perna dela ao ouvir o chamando, pensando, a princípio, que a tinha machucado.
A mão pequena de Hinata, também coberta de feridas superficiais e mais marcas que todo o resto, foi repousar em seu rosto. O banheiro ainda estava quente, mas a mão dela tremia.
- Vamos... Podemos... – Hinata se interrompeu. Respirou, engoliu, respirou de novo, como se pudesse inalar bravura. – Agora podemos contar?
- Não estávamos tentando esconder – Sasuke respondeu, repetindo o que dissera mais cedo a Naruto. Completou com algo que pensava que ela já soubesse. – Hinata, você não é um segredo.
one eternity later...