FAMILIAR


Capítulo IV - KOE

Não suporto mais isso…

Três pares de olhos perolados encaravam um youkai. Os três feiticeiros da família Hyuuga tinham os cenhos franzidos e as mãos nos queixos.

- Ele parece normal.

- Normal? Ele parece um pedaço de carne suculento que vai fazer as hienas do colegial vão se digladiarem para comê-lo.

- Hanabi tem razão, Neji. Ele é bonito demais.

- Podemos usar um feitiço glamour pra disfarçar.

- Seria complicado mantê-lo por muito tempo, todos os dias.

- Eu posso quebrar o nariz dele. Todos os dias.

- Você pode tentar, bruxo.

- Você só ficaria com a mão machucada, nii-san.

- De que lado você está?

- Por motivos legais, do seu, nii-san.

Neji encarou a irmã mais nova, abrindo a boca alguma vezes, mas ela não o encarou de volta, ainda olhando, pensativa, para Sasuke. Hiashi disse, antes de se retirar para começar a trabalhar, que não achava que tinha qualquer problema com aparência humana do youkai, justamente porque ele parecia suficientemente humano, apesar da beleza que beirava o sobrenatural.

Hinata se ocupava em terminava de preparar as lancheiras, que agora eram quatro, enquanto seus irmãos e Tenten debatiam sobre o que fazer para piorar a aparência de seu familiar.

Sasuke tinha uma beleza atemporal e proporções que o faziam ficar bem em qualquer roupa que usava, mas estava particularmente elegante vestindo o uniforme preto de gola mandarim do ensino médio de Konoha. Quando ele apareceu na escada atrás de Hinata, Hanabi engasgou a ponto de lhe sair leite pelo nariz, decretando que se Sasuke saísse de casa daquele jeito não conseguiria chegar à esquina antes das tias e vovós da vizinhança toda assediá-lo. Isso se não fosse recrutado para algum reality show de criação de idols.

Faz cócegas quando eu toco aqui? Não, não precisa chorar, vai acabar logo…

Hanabi estalou os dedos, o que fez com que Hinata levantasse os olhos do último obento que amarrava para um Sasuke de cabelo verde neon.

- Isso talvez resolva o problema.

- Hanabi! – Neji ralhou, mas não fez nenhum movimento para corrigir a cor do cabelo do outro rapaz. – A escola não permite esse tipo de… Mudança drástica.

- É pra um bem maior!

Sem se importar com toda a discussão, Hinata deixou as lancheiras dos irmãos sobre as mochilas deles antes de guardar a sua dentro da própria mochila.

Quando se aproximou dos três, Sasuke imediatamente abriu os olhos, porque sentiu através do laço que Hinata estava se divertindo. Estreitou os olhos amendoados de uma maneira ameaçadora capaz de espantar diversos youkai no passado, mas que não impediu sua bruxa de estender para ele o pacote embrulhado em um tecido xadrez azul e branco que cheirava deliciosamente.

- Seu almoço – explicou Hinata ante a sobrancelha erguida do youkai.

Sasuke pegou o embrulho sem reclamar e Hinata estalou os dedos. Em sua visão periférica, o youkai viu que seu cabelo tinha voltado à cor original.

- Acho que Sasuke-kun não precisa se preocupar com a aparência. – A feiticeira sorriu o que esperava ser um sorriso reconfortante. Em sua opinião, a versão youkai, com orelhas e rabo, era a mais fofa. – Tenho certeza que vão gostar de você.

- Não me importa se humanos vão gostar de mim.

- Claro, com essa personalidade cativante, como não gostar? – Tenten sussurrou de onde estava empoleirada no balcão que separa a cozinha da sala de jantar.

- Tch – Sasuke estalou a língua e cruzou os braços, tendo escutado o sussurro da outra familiar. O sentimento que Hinata recebia através da ligação era desprezo misturado com nervosismo.

Embora não fosse ser a primeira vez de Sasuke entre humanos, a atividade dessa vez exigia muito mais interação com outros além de sua bruxa. Mesmo que não quisesse admitir que estava ansioso, não podia evitar que o laço o dedurasse.

Hanabi deu de ombros, desistindo, e Neji já estava esperando no genkan, sapatos nos pés. Antes da irmã mais velha terminar de vestir os sapatos, a mais nova deu um tapinha de costas de mão no braço de Neji e decretou:

- O dia dos namorados da sua escola vai ser louco.

Shhh…

Vai acabar logo.

Tá doendo?

Pode gritar…

Grita bem alto…

Não tem ninguém pra te escutar.


O nervosismo falsamente mascarado de irritação de Sasuke estava tão intenso que Hinata sentia que poderia vomitar a qualquer momento. Colocou a mão sobre a barriga e tentou mandar sentimentos calmantes para ele através de sua ligação, mas não teve sucesso. Isso porque ele sequer tinha entrado na sala ainda, esperando do lado de fora pela chegada do professor titular naquele ano, Yamato-sensei.

Hinata achava que teria sido melhor se o professor titular de sua sala fosse Iruka-sensei, que tinha um ar paternal e o psicológico preparado para lidar com todos os tipos de alunos. Yamato-sensei era… Peculiar.

- …nata… – Vômito ou dor de barriga, com certeza. Aquilo era pior que suas dores de cólica menstrual. – Hinata-san, você está bem?

- Hn? Oh! – Ela levantou a cabeça e o corpo na direção da voz de Sakura, sua vizinha da carteira da frente. Nem tinha percebido que estava encurvada, testa sobre a madeira da mesa, apertando a barriga. – Estou bem, Sakura-san.

- Tem certeza? Quer que eu te acompanhe até a enformaria? Você está pálida.

É uma metida, por mim podia morrer e ninguém iria sentir falta…

- Ah… É s-só… – Hinata respirou fundo e tentou ignorar o vínculo como um todo. – Não precisa, obrigada.

Era bom que Sakura fosse atenciosa, mas não uma amiga próxima, ou seja, não tentou pressionar Hinata, dando-se por satisfeita pela afirmação de que estava tudo bem com a Hyuuga, virando de volta para a frente e para o livro de química avançada que estava lendo.

A rosada não conseguiu avançar na leitura, porque a porta de correr da frente da sala foi aberta por um Yamato com cara de quem não dormia desde que nasceu. O professor entrou na sala e deixou a porta de correr aberta. Mesmo escancarada, Sasuke não estava imediatamente visível pela abertura.

Hinata desejou que aquilo terminasse logo. Desejou que existisse um feitiço que acelerasse o tempo. Desejou saber um feitiço de deslocamento espacial para sumir dali. Desejou até ter poder suficiente para lançar e manter um feitiço de confusão mental que fizesse com que todos os alunos já conhecessem Sasuke e ele - nem ela - tivessem que continuar com essa tortura social. Tudo que podia fazer era continuar mandando sentimentos calmantes e apaziguadores pelo laço, não mais para tranquilizar Sasuke, mas para que seu familiar não a fizesse ter que sair correndo para o banheiro.

Shino era o representante e se colocou em pé para coordenar a mesura dos alunos antes mesmo que Yamato chegasse ao púlpito no centro da sala.

- Atenção! – Todos os alunos se colocaram em pé com o chamado. Hinata reprimiu um gemido de dor e sentiu a curiosidade de Sasuke atiçada pelo movimento. – Cumprimentar!

- Bom dia, Yamato-sensei! – Os alunos ecoaram em uníssono ao abaixar levemente o tronco. Era possível ouvir o mesmo acontecendo em outras salas. Sem mais instruções, todos voltaram a sentar.

- Sim, sim, bom dia a todos. – Yamato sempre se esforçava para parecer mais ativo e animado do que realmente se sentia. Ele era um bom professor, Hinata só tinha uma leve curiosidade em saber o que o deixava tão exausto todos os dias. – Antes de começarmos a correção dos exercícios que vocês tinham para fazer durante o recesso de inverno… – Um coro de grunhidos e reclamações abafadas surgiu entre os alunos. - É, dá pra ver que vocês passaram muito tempo do feriado estudando. – O professor não esperou a sala se aquietar de novo, apenas continuou falando. – Temos um aluno novo começando hoje. Pode entrar.

Isso fez a sala toda se calar imediatamente e encarar a porta, curiosos.

Para de gritar… Para… Para de gritar… Sua puta… JÁ MANDEI PARAR!

- Ah! – Hinata e a maioria da classe se sobressaltou quando Naruto se levantou de supetão com a entrada de Sasuke, arrastando a mesa e fazendo a cadeira cair para trás, já que ele era o último da primeira fileira e não tinha nenhuma mesa atrás para impedir a queda. – Você… Você é… Hinata…

Então o olhar cerúleo se encontrou com o perolado.

- Algum problema, Naruto?

- Ele… Esse é… O aluno novo?

- Senta aí e fica quieto.

Naruto fez como o professor pediu, menos pela dispensa e mais porque não sabia o que o tinha feito levantar de súbito em primeiro lugar. Tinha algo em Sasuke - e agora também em Hinata, e na verdade mais em Hinata do que em Sasuke - que estava provocando alguma coisa desagradável dentro de si.

Sasuke terminou de entrar na sala, parou ao lado do púlpito, cruzou os braços, passou os olhos por cada um dos quatorze alunos presentes – as salas da escola secundária de Konoha não eram muito grandes – e ficou lá parado.

Todos os amigos de Hinata que estavam no karaokê no final de semana lançaram olhares para ela de diferentes pontos da sala, exceto Naruto, que continuava encarando Sasuke. A moça deixou que seus cabelos caíssem nas laterais do rosto pra esconder o rubor. Em sua barriga, o laço esquentava.

O silêncio desconfortável se estendeu.

Ninguém precisa saber… Ninguém vai saber…

- É a sua primeira vez? – Yamato perguntou, mas o youkai não percebeu que o professor estava falando com ele. - Oi, aluno novo.

- Quê?

- Não é "quê", eu sou seu professor, tenha algum respeito. – Mas o tom do homem não parecia nem um pouco com o de uma autoridade corrigindo o comportamento de um aluno malcriado. – Se apresente para a sala.

Sasuke continuou olhando para o professor, não descruzou os braços, mas levantou uma sobrancelha.

Yamato suspirou, pegou um giz de uma caixa na prateleira sob o púlpito e o entregou ao rapaz.

- Escreva seu nome no quadro se não quiser falar.

O youkai pareceu ficar satisfeito em só precisar fazer aquilo, por isso aceitou o giz, deu as costas a todos e rabiscou seu nome em traços rápidos. Sua caligrafia era elegante, como se estivesse praticando shodo com uma espada ao invés de com o pincel - ou giz.

- Pode sentar, Uchiha Sasuke.

Sasuke deixou o giz na beirada da lousa. Seus olhos negros varreram a sala de novo, encontrando os de Hinata por um longo tempo, os de Naruto por um tempo mais longo ainda. O moreno percorreu o espaço entre a segunda e terceira fileiras, ambas com as últimas carteiras desocupadas, uma delas do lado esquerdo de Naruto.

Sasuke parou ao lado da carteira ocupada por Shikamaru.

- Saia.

Hinata queria repreendê-lo por ser grosseiro e fazer coisas desnecessárias, mas duvidava que seu familiar lhe desse atenção.

Shikamaru hesitou somente o tempo de suspirar e murmurar:

- Chegou outro cara problemático.

Eu sei que você quer…

O Nara obedeceu sem reclamar – muito –, pegou suas coisas e se colocou na carteira imediatamente atrás da que ocupava, também vazia.

A sala tinha lugares marcados por ordem alfabética do hiragana, mas Yamato observou a interação sem contestar. Desde que sentassem, ficassem quietos e ele pudesse dar suas aulas em paz, não tinha objeções com o arranjo. E tinha sido a família Hyuuga a matricular Sasuke na escola, era apenas natural que ele quisesse ficar perto de seus parentes em um ambiente novo.

Sasuke sentou, colocou os braços sobre a carteira e apoiou o queixo em uma das mãos. O nervosismo que ele sentia alguns minutos atrás dissipou-se, restando apenas um leve aborrecimento por estar ali e não dormindo sobre os travesseiros da cama de sua bruxa.

O familiar olhou para Hinata de esguelha, verificando com a visão o que já sabia pelo laço: ela estava bem, mais calma, concentrada na explicação, apenas com um leve desconforto ansioso e um pouco de sono, mas isso devia ser reflexo de seus próprios sentimentos. O youkai deu de ombros para isso, nada com o que se preocupar. Cuidar dela o tempo todo seria um trabalho aborrecido, mas nada complicado.

Eu quero te ver morrer devagar…

Vou te rasgar… Do queixo até a porra do umbigo…

E vou foder suas tripas!


- Vocês viram o aluno novo da 2-C?

- Sim! É muito lindo!

- Será que não é famoso?

- Parece que veio de uma cidade minúscula, então não deve ser…

- Vai ver ele veio pra ficar famoso aqui!

- Konoha não é tão grande, seria um desperdício.

- Ele é primo do Neji-kun, por isso veio pra cá.

- Ah, está com os Hyuuga.

- Uma família que tem muito boa sorte com os genes.

- Os masculinos, pode ser.

- Não fale assim.

- Uchiha Sasuke.

- Que nome imponente.

- Antigo, meio fora de moda.

- O rosto dele compensa.

- Parece ser bom nos esportes, porque é alto.

- O que será que ele gosta de jogar?

- Os meninos dos clubes já foram recrutá-lo?

- Ele parece não se dar muito bem com Naruto-kun.

- Ah, mas deve ser culpa do Naruto.

- Ele sabe ser insuportável.

- Será que ele tem namorada?

- Sasuke-kun está aqui faz uma semana, como pode já ter uma namorada?

- Ou namorado.

- Com um rosto e corpo daqueles é impossível ficar solteiro muito tempo.

- Podemos perguntar pra Hinata-chan.

- Melhor do que perguntar pro Neji-kun, parece que eles também não se dão bem.

- Os meninos estão implicando com ele só porque Sasuke-kun é bonito.

- E bom nos esportes.

- E inteligente.

- Ele é perfeito!

- Mas tem péssimos modos.

- É, ele é mal educado com quem não gosta e acho que ele não gosta de ninguém.

- Ele tá sempre com a Hinata-chan.

- Mas ele também trata ela mal.

- Verdade.

- Eu vou tentar me declarar.

- Hunf, boa sorte.

- A Yumi-chan não foi rejeitada?

- Claro que Sasuke-kun não gostaria da Yumi-chan, aquela balofa!

- Pode fazer um bento pra ele.

- Boa sorte em conseguir cozinhar algo melhor do que a Hinata-chan.

- Até o tomo-choko dela fica gostoso.

- O dia dos namorados está chegando, pode tentar falar pra ele com chocolates.

- Acho que Sasuke-kun não gosta de doces.

- Nem de coisas quentes. Língua de gato, sabe?

- A Aya-chan do 1-A está vendendo cards do Sasuke-kun.

- Mentira! Como ela conseguiu tirar as fotos?

- Aya-chan é incrível.

- Aya-chan é assustadora.

- Vamos lá comprar alguns no almoço.

- Ele é mesmo um idol do colegial.

- Será que ela também tem fotos do Neji-kun?

- Tch, eu odeio aquele Sasuke!

- Não seja um mau-perdedor, Ayato-kun.

- A gente não conseguiu ganhar um jogo contra o 2-C desde que ele chegou.

- É, ele e o Naruto formam uma dupla de dar medo.

- E eles só se dão bem quando estão no mesmo time. Se ficam em times opostos ou fora da quadra, eles quase se matam.

- Se eles ficam em times opostos praticamente não tem jogo.

- Ele já entrou para algum clube?

- Já, clube de kendo.

- Ele é muito bom.

- Tch, novidade.

- O professor o chamou para participar da escala principal no próximo torneio.

- Ele é muito forte, esse Sasuke, em tudo.

- Mas ainda tem uma péssima atitude.

- Bado bouya. (Bad boy)

- Você precisa melhorar esse inglês antes da próxima prova.


- Essa é a terceira vez essa semana que o comitê disciplinar e o conselho estudantil são acionados por um professor denunciando vocês dois! Terceira! Vez!

A vice-presidente do conselho estudantil, Sakura, gritava enquanto observava os dois rapazes ajoelhados na sala de aula desocupada do primeiro andar que era usada como sala do conselho estudantil e do comitê disciplinar, que na teoria eram dois órgãos escolares distintos, mas que na prática tinham ambos as mesmas pessoas como membros, de forma que não importava qual dos dois estava aplicando a pena.

Além de estarem ajoelhados em posição de seiza, tinham os dois braços erguidos. Ficar nessa posição por meia hora foi o castigo imposto daquela vez, além dos cascudos terrivelmente doloridos de Sakura. As punições anteriores haviam sido pedido público de desculpas no local do fato e escreverem cartas de desculpas um para o outro e para a escola. Dessa vez a vice-presidente preferiu ser mais física em sua sentença.

- Sakura-chan… – Naruto choramingou.

- Se eu ouvir mais um pio de vocês, vão ficar aí mais quinze minutos.

Naruto ainda tinha a boca aberta, mas a fechou em um bico. Sasuke, ao seu lado, estava atirando adagas com os olhos na rosada enquanto ela voltava a se sentar na mesa com os outros membros do conselho/comitê para voltarem a discutir o calendário de eventos do ano e as preparações que seriam necessárias.

Sasuke olhou de canto de olhos para Naruto, o loiro já demonstrava os sinais de exaustão dos braços naquela posição. O familiar precisava admitir que mesmo sendo um youkai, não era menos doloroso sentir o sangue não ser capar de chegar até as pontas de seus dedos. Tentou focar em outra coisa para não ficar remoendo a dor e sua consciência foi sozinha até seu umbigo.

Não era tão fácil entender o que Hinata estava sentindo pelo laço quando estavam separados por grandes distâncias, mas conseguia depois de tentar um pouco. Tinham se separado após as aulas, Hinata para o clube de artesanato tradicional e Sasuke para o treino de kendo – o youkai não achou que conseguiria fazer algo que o interessasse naquele mundo, mas os treinos eram muito parecidos com os que fazia em casa com Itachi, e sentia saudades do irmão. Talvez pudesse pedir a Hinata se podia voltar para o seu mundo, só por alguma horas.

O laço levou sua consciência para mais perto de sua bruxa.

Próximo, mas não o suficiente.

Tentou de novo e percebeu que não conseguia se aproximar mais, como se houvesse uma outra presença já ocupando a mente de Hinata no lugar em que ele normalmente se aninhava.

Queria tentar saber onde ela estava, mas era impossível conseguir enxergar pelos olhos dela. Nem o laço que compartilhavam nem seu contrato lhes dariam poderes o suficiente para aquilo. E também não vinham com GPS.

Fechou os olhos e se concentrou de novo. Iria forçar a passagem para os sentimentos de Hinata. A presença que estava lá o empurrou de volta. Sua conexão com Hinata cessou. O choque foi tão grande que fez Sasuke abrir os olhos que brilharam vermelhos. Assustado, levou uma das mãos à cabeça e a outra à costas para verificar que suas orelhas e rabo não tinham aparecido, tamanho sua surpresa com ter uma consciência impedindo a sua de estar onde deveria.

- Sasuke-kun, mãos pra cima!

- A bruxa…

- Você acabou de chamar a Sakura-chan de bruxa, teme?

- Naruto, você também, mãos pra cima!

- Mas Sakura-chan, ele…

- Sasuke-kun! Sasuke-kun, volte aqui!

Sakura levantou da cadeira, mas não foi rápida o suficiente para impedir o Uchiha de ignorar todos os presentes e se atirar porta afora em uma corrida desabalada.

- O que deu nele? – Ela o observou sumir pelo corredor. Não se lembrava de jamais ter visto alguém correr tão rápido. Que pena que ele tinha escolhido o time de kendo, o pessoal do atletismo estava perdendo uma chance no campeonato nacional com aquele ali.

Assim que virou a esquina do corredor, Sasuke se transformou. Era muito mais fácil correr em seu quimono do que naquelas roupas. Assim também podia deixar a cauda livre, o que o ajudava com movimento e equilíbrio, e as orelhas. Orelha humanas eram muito menos desenvolvidas que as suas orelhas de youkai-gato.

- Aquele era Uchiha Sasuke, do primeiro ano?

- Não pode ser, com aquelas roupas?

- Cosplay?

- Eu não sabia que ele entrou para o clube de teatro.

O clube de artesanato tradicional ficava no final do corredor do lado leste do segundo andar, o completo oposto de onde Sasuke estava antes, no lado oeste do primeiro andar. Sentiu o cheiro do shampoo caro de sua bruxa aumentar conforme se aproximava, mas as emoções através do laço continuavam mudas.

O youkai parou do lado de fora da porta e tentou se acalmar enquanto ouvia. O cheiro de Hinata permeava o local, mas ela passava bastante tempo ali, o que não queria dizer que o rastro estava fresco; havia burburinho de conversas, a voz da bruxa não se destacou. Concentrou-se para mudar de forma de novo no momento exato em que a porta se escancarou e Ino apareceu com um ramo enorme de folhas nos braços para um projeto de ikebana em que estava trabalhando.

- Sasuke-kun…

- Hinata, onde ela está?

Então Ino viu. Ele tinha tido tempo de se concentrar para mudar as roupas e guardar a cauda, mas se esquecera das orelhas.

- Aaah! Sasuke-kun! Vamos conversar ali! – Desesperada, a moça impediu que o rapaz entrasse na sala de aula procurando por Hinata ao empurrar toda a folhagem de seus braços para cima de Sasuke. Usou magia para contrabalancear a força dele e o tirar da porta da sala, fazendo a porta fechar atrás de si magicamente também.

- Você é outra bruxa maldita! – rosnou Sasuke enquanto era empurrado. – Cadê a Hinata?

- Fala baixo, seu idiota! – Ino gritou sussurrando. – Você tá com as orelhas pra fora!

O Uchiha levou as mãos à cabeça, percebeu que ela estava certa e quando baixou as mãos, as orelhas de gato haviam sumido, restando apenas as orelhas humanas falsas e a carranca.

- Hinata-chan saiu tem cinco minutos, mas não disse para onde ia – Ino continuou quando viu que ele tinha conseguido se acalmar o suficiente para esconder as orelhas. – Acho que ela foi buscar algo na sala.

Frustrado, Sasuke não respondeu e saiu correndo de novo. Ao virar o corredor, se transformou, dessa vez em gato preto. A conexão do laço não voltara ao normal ainda, de forma que era melhor depender de seu nariz. Não fazia tempo desde que ela tinha deixado a sala do clube, então o cheiro que sentira ao se aproximar não era apenas porque ela estava bastante na sala, mas porque era um rastro recente levando a algum outro lugar.

As salas de aula do segundo ano também ficavam naquele andar, então Sasuke decidiu correr até o outro lado, mas parou bruscamente ao chegar nas escadas no centro do prédio. O cheiro estava subindo. Pulou de cinco em cinco degraus e o cheiro continuava a subir quando chegou ao terceiro andar. Ela tinha subido o último lance, que dava para o terraço. Sasuke estava bastante familiarizado, porque gostava de fugir para cima do teto da entrada do terraço para tirar cochilos nas horas vagas.

Sasuke a avistou assim que abriu a porta, de volta a sua forma youkai – gatos têm o pequeno defeito de não possuírem polegares opositores. Ela estava flutuando a meio metro do chão, uma das mãos estendidas como se estivesse prestes a conseguir pegar algo no horizonte, os cabelos chicoteando em volta dela, açoitados pelo vento cortante de inverno. Hanabi a descreveria como uma garota mágica prestes a fazer a transformação para ativar os poderes e mudar de roupa.

- O que pensa que está fazendo, sua bruxa idiota!? – Ele berrou.

O grito não fez nada para despertá-la e Sasuke percebeu que a distância entre os pés dela e o chão estava aumentando rapidamente. Mais um pouco e ela flutuaria por cima da cerca. A outra mão de Hinata foi se juntar à primeira, ambas estendidas para pegar ou receber algo.

Sasuke correu até ela e num salto se colocou na frente de Hinata. Os olhos estavam abertos, mas o perolado da íris tomara o cristalino por completo. O youkai percebeu os lábios dela se movendo, como se recitasse alguma coisa, palavras que Sasuke não compreendeu.

- Bruxa! – Gritou ele agarrando-lhe o antebraço em um pulo.

O contato estilhaçou toda a cena.

Hinata caiu. Sasuke conseguiu pegá-la e usou o próprio corpo para amortecer a queda, protegendo-lhe a cabeça com as mãos, puxando-a de encontro a seu peito. Assim que estavam no chão, Hinata segura sobre suas pernas, voltou a chamar-lhe pelo apelido nada carinho, uma mão segurando-lhe o rosto. Sasuke observou a íris perolada retroceder de volta ao círculo de tamanho normal no centro dos olhos dela e, com isso, a consciência de Hinata voltar junto com a conexão que compartilhavam.

Foi uma sensação intensa o suficiente para fazer ambos arfarem.

Sasuke sentiu o medo e a dor dela.

Hinata sentiu o desespero e a preocupação dele.

Se abraçaram em busca de conforto antes de conseguirem falar ou fazer qualquer outra coisa. Sasuke afastou o cabelo dela e lambeu a pele onde sua marca deveria estar até que ela aparecesse, saudável e intacta. Colocou o nariz sob a curva da orelha de Hinata e inalou, satisfeito.

Seus sentimentos fluíam como uma torrente morna entre os corpos, confortando seus espíritos tanto quanto seus corpos. Hinata tremia, ambas as mãos apertando firmemente as roupas de Sasuke. Se ela tivesse garras como as de seu familiar já as teria estraçalhado.

Então o semblante do Uchiha se fechou e ele segurou sua feiticeira pelos dois ombros, afastando-a dele. Hinata foi sem resistir, sentia-se cansada, mole até, mas não largou a manga do quimono dele, o tecido fechado dentro de seu punho.

Não queria pensar no que poderia acontecer se o soltasse.

Não queria pensar no que poderia ter acontecido se Sasuke não estivesse ali, se não a tivesse encontrado… Embora não soubesse exatamente o que tinha acontecido. Estava ouvindo as vozes, como acontecia desde o ano novo. Estava concentrada em pintar um padrão de flores para uma estampa de washi-e na sala de artesanato quando uma das vozes se sobrepôs às outras, gritando em sua cabeça como se estivesse do seu lado, e então aquela sensação pesada da energia negativa tomou sua consciência.

- Sasuke-kun… - ela começou a dizer, fracamente. Era difícil fazer a voz sair. – E-eu… Tem uma coisa… Que preciso te contar.


- Você está ouvido vozes!?

Sasuke gritou, mas Hinata não tentou silenciá-lo.

Estavam em casa.

Ele tinha insistido para trazê-la antes que continuassem a conversa, porque era final de janeiro, as temperaturas estavam abaixo de zero e não demoraria nem a escurecer nem a começar a nevar para que ficassem de papo no telhado da escola usando nada além do uniforme de inverno, que podia ser bem quentinho dentro da escola aquecida, mas definitivamente não era o ideal para o lado de fora.

Seu familiar a tinha carregado nos braços, pulando de telhado em telhado, correndo mais rápido do que qualquer humano normal conseguiria ou mesmo um espírito familiar normal, já que a maioria eram espíritos humanos. O caminho que demoravam 30 minutos para fazer a pé foi feito em menos de 10 devido as habilidades de Sasuke.

A feiticeira destrancou a janela de seu quarto com um feitiço simples - a casa tinha suas proteções, mas a magia de Hinata era parte dos Hyuuga e a casa se abriu para ela sem dificuldades. Pela janela foi fácil evitar Hizashi e Tenten. Hiashi estava na clínica, Neji ainda não tinha voltado para casa porque tinha o clube de arco e flecha depois das aulas, nem Hanabi, com o clube de ginástica.

- Desde quando? – Sasuke estava sentado a sua frente na cama, os braços e as pernas cruzados, o cenho franzido e os olhos brilhando vermelhos, sem conseguir conter a raiva fervilhando dentro de si. – E o que dizem?

- Desde o ano novo. – Hinata desabafou. – Desde a primeira vez, nunca pararam, só não eram tão frequentes. – A feiticeira estava embrulhada em seu cobertor mais grosso. Por mais que a casa estivesse em uma temperatura agradável, sentia frio até os ossos. – Eu não entendia o que diziam, no começo. Eram apenas sussurros. Quando as aulas voltaram, a intensidade aumentou.

Os olhos perolados deixaram o rosto do youkai para encarar a neve caindo através da janela. Lágrimas repentinas brotaram e começaram a descer pelo rosto de Hinata sem que ela mesma se desse conta. Lembrou-se das vozes, das palavras ditas, das cadências e dos tons, dos sentimentos, das dores… Deixou que as lágrimas escorressem.

- E-eu não sabia o que eram… – Hinata se esforçou para continuar falando. Sasuke podia sentir a tormenta através do laço. Perguntou-se como ela tinha conseguido esconder tão bem dele pelo que estava passando por tantas semanas. Dele. Eles compartilhavam um laço espiritual! – Foi s-só hoje que eu percebi que as vozes s-são pensamentos… Pensamentos… Te-terríveis…

Hinata chorou de soluçar por muito e muito tempo sem conseguir elaborar o que diziam os pensamentos das pessoas que ouvia.

Chorou, mas teve tino suficiente de fechar a porta com um feitiço e abafar os sons de seu quarto com outro. Continuou chorando quando ouviu Hanabi chegar e passar apressadamente pelo corredor. Continuou chorando quando Neji chegou, bateu suavemente na porta e perguntou por ela, apenas para ser respondido por Sasuke que ela estava dormindo. E só parou por que as lágrimas acabaram. Os soluços e arquejos ainda demoraram a passar.

Restou a dor e o cansaço.

E Sasuke, seu familiar, absorvendo, não mais apenas compartilhando, seus sentimentos através da conexão que compartilhavam. Conseguiu senti-lo puxando como uma sucção física e, aos poucos, foi se sentindo mais leve, a barriga e o pescoço, bem onde havia a marca do contrato, formigando agradavelmente. Não se lembrava de nada do tipo já ter sido relatado entre feiticeiro e familiar, no seu coven ou na história.

- P-pare, Sasuke-kun, não faça isso…

- Você é minha, bruxa! – ele rosnou, presas e tudo.

A declaração não era nova e não era nada que Hinata já não soubesse. Esse fora o acordo que fizeram para que Sasuke se tornasse seu familiar. E ele cumpria o dever sempre reiterando que a vida dela lhe pertencia.

- Sabe como eu soube que você estava em perigo? – Hinata queria responder que foi a conexão, mas Sasuke não deixou. – Porque eu parei de sentir você! O que quer que sejam essas vozes que você está ouvindo, foi algo poderoso o suficiente para interromper nosso contrato.

- Isso não é possível…

- Tch. – Sasuke estalou a língua com desprezo. – Ter um youkai como familiar não era possível, eu assumir a forma humana por muito tempo não era possível. Parece que você é a bruxa do impossível, não acha?

Hinata não respondeu, perdida em pensamentos, e Sasuke tentou relaxar.

- Vamos contar ao seu velho?

- Não! – A moça se sobressaltou com a sugestão. Podia estar ouvindo vozes e perdendo o controle sobre si mesma, e nada disso era normal, mesmo para uma feiticeira, mas ainda eram sintomas parecidos demais com a doença de sua mãe. – Vamos esperar.

Sasuke não discutiu. Ele sabia que o patriarca dos Hyuuga estava preocupado o suficiente com a filha para exigir que o familiar dela a acompanhasse o tempo todo, mas Hinata era sua bruxa, sua lealdade estava com ela enquanto durasse o contrato.

- E se acontecer de novo?

- Eu tenho você. – Hinata levantou os olhos para encarar os de Sasuke. Foi a primeira vez que ela conseguiu sorrir desde que ele a tirou do transe, um sorriso minúsculo. – Eu quero… Eu preciso saber mais sobre as vozes.

O youkai concordou simplesmente porque era bastante parecido com Hinata naquele sentido. Se tivesse um problema como aquele, também tentaria resolver sozinho o máximo possível antes de pedir ajuda. Talvez não fosse a melhor decisão, exceto que Hinata tinha um trunfo: seu familiar.

- Bruxa… – Hinata levantou a cabeça de novo. Nem percebeu que a tinha baixado, seus olhos estavam pesados. Queria dormir e nem era hora do jantar ainda. – Prometa que não vai seguir as vozes e nem fazer o que elas mandam.

- Sasuke-kun…

- Prometa! Precisa me chamar antes, se eu não estiver por perto. – O youkai levou uma das mãos ao pescoço de Hinata, sobre a marca, e a outra colocou sobre o próprio umbigo. – Não importa se tem algo por aí que quer você… Você é minha.

A Hyuuga demorou um longo tempo para responder, absorvendo as palavras de seu familiar.

- Obrigada, Sasuke-kun. – Hinata pegou-lhe a mão que estava sobre a marca em seu ombro e apertou com gentileza. Com ele ali, mesmo que a possessividade fosse motivada pelo contrato que travaram, era bom saber que tinha alguém que enfrentaria as coisas ao seu lado. – Eu prometo.


Tamo esquentando os motores.

O que vocês acham que está por trás das vozes?