Marcus afastou o ombro para longe do alcance do rufia extensivamente tatuado, olhando para ele com apenas uma amostra do nojo que sentia. Já era mau o suficiente com quanta frequência tinha de vir a este antro; traçava o limite a permitir ser tocado por criminosos.

Já era mau o suficiente ter de fazer acordos com criminosos.

Já era mau o suficiente ter de trabalhar para um criminoso.

- Ah, Marcus, que bom que tenhas vindo tão em cima da hora - Silco levantou-se da cadeira atrás da secretária, dando um trago na sua bebida pelo caminho. - Receio que ainda vaiamos ter de esperar mais alguns minutos, mas não deverá ser muito inconveniente.

A sirigaitazinha bomba-relógio dele (Filha? Protegida? Algum caso sórdido? A simples ideia dáva-lhe a volta ao estômago) estava ali hoje, tudo nela obsceno e perturbador como de costume. Estava sentada - ou deitada - de cabeça para baixo no sofá em que Silco habitualmente se sentava quando convocava Marcus, as perninhas magras e pálidas abanando para cima no ar e para baixo sobre as costas do sofá com um som metálico rítmico das chapas nas suas botas, enquanto ondulava as mãos para aqui e para ali como se estivesse a desfrutar de uma música que só ela ouvia. Rodou a cabeça na direcção de Marcus na entrada, esboçando um sorriso petulante. Marcus acompanhara o crescimento dela desde uma miudinha de rua magricelas até esta adolescente instável com membros de arame em que se estava a tornar, e o desprezo familiar por Zaunitas no geral era na verdade sobreposto por uma sensação gelada de medo na boca do estômago sempre que a via. O seu cabelo entrançado vertia do assento e espalhava-se pelo chão, juntamente com cada partícula de pó e lixo e sujidade entranhadas nas solas dos sapatos deles.

Uma imagem de decadência por si só. Para onde quer que olhasse, da decoração aos rufias a Silco e Jinx, era como se aquele escritório tivesse uma amostra de tudo o que estava errado nesta fossa subterrânea, tudo e todos que Marcus sempre quisera erradicar, e dessa forma ajudar a construir uma sociedade digna, segura e boa para todos os outros. Em vez disso, alastrava-se, graças a gente como Silco e os seus métodos, graças à sua própria existência; decadência, imundice, ruína, crime, violência. O próprio ar neste sítio fedia com aquelas coisas e infectava pessoas como a doença que era.

- O que raio queres? - cuspiu ele, marchando para o centro da sala.

- Então, Marcus. Achei que já estávamos acima dessa mesquinhez.

- Responde-me. Não tenho o teu tempo livre.

Silco na verdade atreveu-se a resfolegar, um som baixo e quase imperceptível, mas Marcus ouviu-o.

- Senta-te, Marcus.

Marcus sentiu uma pontada de raiva no peito. - Eu disse...

- Senta-te.

Marcus fechou a boca. As pernas de Jinx remexendo-se para cima e para baixo estavam a distraí-lo no canto do olho e voltou-se para ela em irritação, apenas para a ver girar as mãos teatralmente e depois apontá-las, fazendo armas com os dedos e um som infantil com a boca, na direcção do banco destacado para ele que tinha sido colocado no lugar habitual antes da sua chegada. Marcus cerrou o maxilar ao olhar para Silco novamente, vendo a expressão do homem escurecer e sentindo um arrepio rastejar indesejado pela sua espinha graças àquele olho doentio fixo nele.

O mundo estava errado se deixava homens como Silco, que eram suposto aceitarem a sua insignificância e aceitarem o seu devido castigo por se indulgenciarem no crime, erguerem-se para alguma semelhança de poder na imundice. Alguém tão magro, tão quebrado como ele (Marcus já vira o seu rosto sob a maquilhagem, afinal de contas. Sabia as cicatrizes que o monstro carregava) não deveria ser autorizado a parecer - a ser - tão intimidante sem esforço.

No entanto, aqui estavam eles. A Lei curvando-se perante o Crime.

Sempre quisera fazer a coisa certa, mas o mundo estava errado. Forçáva-lo a tornar-se numa roldana que o engrenava no seu mau funcionamento.

Marcus ouviu os rufias atrás de si moverem-se e poupou-lhes o trabalho. Sentou-se, tentando salvar a sua dignidade.

- Assim está melhor - disse Silco. Desgraçado.

- O que é que queres? - exigiu ele novamente saber. Os capangas agora faziam-lhe sombra atrás do banco, tal como era sua função sempre que Marcus ali estava. Combatia a irritação que lhe provocavam relembrando-se que ele era uma ameaça, daí o motivo para Silco precisar estar acompanhado por um punhado de homens para sequer ter uma reunião. - Não sou um cão que podes chamar para o colo sempre que te apetece.

- É precisamente isso que és, Marcus - Silco sentou-se ao lado de Jinx, abrindo uma cigarreira que estava pousada entre eles. Todos os seus movimentos foram calmos enquanto ele preparava o charuto e o acendia, afirmando aquela sensação de domínio sem esforço. - Não creio que tenhas compreendido bem o que disse da última vez que nos vimos.

- O quê? - fez Marcus. Tentou lembrar-se que exigências e ameaças veladas Silco dissera na reunião anterior enquanto sentia o olhar do homem sobre si através de uma nuvem de fumo de charuto. Silco falara de subornos necessários para os negócios que ambicionava, acerca de licenças que ele tinha de adquirir para os chem-barons por este ou por aquele motivo, e acerca de aumentar o policiamento em certas áreas. Marcus tratara das coisas para que tudo pudesse ser feito, mas era preciso tempo. - Já fiz o que me mandaste. Do que estás a-

Ao lado dele, Jinx puxou arma do coldre pendurado contra a sua anca. Marcus recuou instintivamente, mas Silco agiu como se nada tivesse acontecido. Ela só começou a brincar com a pistola como se fosse um brinquedo.

Decadente, arruinada, doente.

- Uma das fábricas de Shimmer foi atacada - disse Silco, forçando a sua atenção de volta enquanto tinha de fingir que uma terrorista-em-formação adolescente não estava a empenhar uma arma letal ao seu alcance. - Sofremos pesadas perdas de produção, e deverá ser escusado dizer como isso se converte em perda de lucro.

- Esperas que eu saiba quando é que algum rufiazeco vai experimentar ser ele a explodir com coisas? - perguntou Marcus, olhando para Jinx de novo. Ela voltou a guardar a arma e começou a cantarolar uma melodia para si.

- Espero que faças o teu trabalho, que achei estarmos claros qual é. Mas como disse, parece que não estamos.

A porta do escritório abriu-se e a segunda em comando de Silco entrou, arrastando um homem espancando e ensanguentado com ela. Jinx girou e sentou-se direita no sofá, os olhos colados neles.

- Mesmo a tempo - disse Silco com um tom agradável enquanto Sevika atirava o homem rudemente para o chão entre eles. - Queria que estivesses presente para poder explicar-te devidamente a situação, Marcus. Este aqui é um dos meus homens encarregue de proteger a fábrica de Shimmer em questão. Claramente, ele e os amigos não fizeram muito bem o seu trabalho.

O homem retorceu-se enquanto se tentava levantar sobre os cotovelos, a cara com sangue e hematomas. Marcus mal olhou para ele.

- Já seria mau o suficiente, mas parece que a única razão para termos sido atacado para começar foi porque ele revelou informações a um grupo chamado Firelights - explicou Silco.

- Chefe, eu... - o capanga tentou antes de ser silenciado com um pontapé no estômago deferido por Sevika. Marcus moveu o pé para longe do sangue cuspido para o chão, enojado.

- Agora é suposto eu cuidar dos teus homens? - perguntou Marcus com desdém na voz.

- Não.

Houve um som rápido quando Jinx voltou a puxar da arma. Marcus mal teve tempo de o registar antes de os seus tímpanos ficarem surdos com a explosão do tiro, e fitou de olhos esbugalhados o homem enquanto este caía no chão, uma poça de sangue saindo aos jorros do crânio.

Assim, simplesmente. Como se-

- Finalmente! Estava a ver que nunca mais! - reclamou Jinx, girando a pistola com um sorriso na cara.

- Eu trato dos meus homens - respondeu-lhe Silco calmamente. - Insurrectos e idiotas armados como estes Firelights não são da minha responsabilidade, no entanto. É aí que tu entras, Xerife. Ou na verdade, onde não entraste. Daí aqui estarmos.

- Já te disse... - tentou ele. Os ouvidos tiniam e mal se apercebeu do quão seca a sua garganta estava de repente.

- Tu não me dizes nada, Marcus, a menos que seja que os Enforcers vão agir condignamente a ameaças de violência contra a segurança pública - interrompeu-o Silco, fazendo Marcus engolir a sua impertinência (não, não impertinência, ele era um Enforcer, ele é que era o certo ali) com aquele medo de que Silco se alimentava, que dependia para o seu império. - É isso que vais dizer, e fazer como te mandam.

- "Ameaças contra a segurança pública"? - repetiu ele, apesar do facto de conseguir vê-lo de imediato na sua mente, como a história retorcida funcionaria tal como Silco queria. - É suposto pôr os meus homens a tratar da tua oposição agora?

- Estás a neutralizar criminosos, Xerife. É o que estas pessoas são no final de contas e segundo os teus próprios critérios.

Mesmo que se opusessem a Silco, um mal por si só, essa oposição era farinha do mesmo saco, de facto. Se se dignasse a pensar nisso, veria que as pessoas estavam presas entre a espada e a parede no que tocava a Silco, mas isso pouca importância tinha para Marcus; fosse como fosse, para ele, todos os vermes na cidade inferior estavam bem representados com Silco no comando dela.

- Espero que sejas mais cuidadoso nas tuas investigações daqui para a frente - completou Silco. - Não vamos repetir este episódio.

- Devias fazer o mesmo com o lixo que trabalha para ti - disse Marcus apesar de tudo, apontando com a cabeça na direcção do corpo que arrefecia no chão antes de se levantar e marcar a sua partida. - Foi por isso que tudo isto aconteceu para começar.

Silco sorriu, ou parecia tê-lo feito; era difícil perceber com aquela cicatriz extensa na cara dele.

- Oh, Xerife?

Marcus estacou antes de conseguir chegar à porta.

- É melhor considerares mudar de uniforme antes de ires para casa - disse Silco com suavidade. Marcus voltou-se para olhar para ele por cima do ombro. - Estás manchado de sangue. Não quereríamos que a tua filha visse uma imagem tão terrível, pois não?

Marcus sentiu-se como se tivesse sido esmurrado no estômago.

- Não te atrevas-!

- Então, o que disse eu? - interrompeu-o Silco enquanto os seus homens avançavam perante a volta abrupta de Marcus. - Mesquinhez e tudo isso.

- Acho que ele não percebe - disse Jinx, aumentando o seu sorriso ao encostar a cabeça contra o ombro de Silco. - Se calhar da próxima vez falho o tiro e abro um buraquinho com uma bala naquele uniforme para fazer conjunto com o sangue.

- Isso só será necessário se o Marcus se voltar a comportar mal, Jinx - respondeu Silco, o seu tom frio de alguma forma mais ameno de uma forma que não fazia sentido no contexto, como se de repente estivessem a ter um momento privado. Como era difícil compreender o que havia entre eles, aquela proximidade física e o tom podiam ser um momento terrivelmente retorcido entre pai e filha ou uma troca lasciva, e o facto de Marcus ter pensado em ambos ao mesmo tempo fê-lo sentir-se enjoado.

- Oh, por favor faz isso depressa, Marcus. Por favor! - pediu Jinx, rodopiando a arma na mão e apontando-a a Marcus. - Eu vou estar a ver!

Marcus sentiu o ritmo cardíaco disparar. Era difícil manter-se firme, mesmo sendo um Enforcer.

- Vai lá, Xerife - disse Silco com a mesma calma enquanto continuava a fumar o seu charuto, a sua rapariga lunática repousada sobre ele e emoldurando-os a ambos numa cascata de azul. - Não desperdices o teu tempo precioso.

Marcus engoliu quaisquer comentários ofendidos, sentindo uma gota de suor formar-se junto ao cabelo totalmente contra o seu controlo. Os olhos percorreram o escritório, procurando e achando a única coisa que o podia reconfortar um pouco.

Eles não eram pessoas.

Eram monstros.

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fim

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Nota: Obrigada por lerem.

Disclaimer at the end but obviously and unfortunately don't own anything in Arcane.